Sexta, 17 de setembro, 2004
O funeral dos partidos
"O funeral dos partidos - Guilherme Fiuza para o No Mínimo
15.09.2004 | As eleições municipais de 2004 poderão ser lembradas como aquelas em que traficantes receberam a companhia de limpeza urbana a bala, no subúrbio carioca de Irajá. O objetivo da “operação” era resgatar dos lixeiros o material de propaganda do candidato do PMDB. Ulysses Guimarães não viveu para conhecer esse tipo de cabo eleitoral, mas ficaria orgulhoso de ver, nessa mesma conjuntura, suas sementes democráticas brotando em Xapuri, no Acre. A terra de Chico Mendes foi incluída entre os exemplos mundiais de soluções para a vida nas cidades.
O PMDB de hoje é, em todo o território nacional, o melhor exemplo de vampirização do Estado pela política. Uma sigla que não quer dizer nada, ou melhor seria dizer uma senha – que pode valer algumas cestas básicas ou um aviso de que os fuzis bandidos daquela área “recomendam” o voto em fulano. Isto é o PMDB, e é o quadro atual dos partidos políticos nacionais.
O PSDB e o PT podem virar casaca à vontade, do dia para a noite, na questão da cobrança dos servidores aposentados, por exemplo. É legítimo que um defenda hoje o que maldizia ontem, e vice-versa. Só não podem continuar insistindo em convencer a platéia de que são partidos políticos. Assumam-se como brigadas de disputa do poder, parem de cansar o país com essa conversa de princípios e programas, e estará tudo certo.
Xapuri não tem nada com isso. A cidade acreana, ou pelo menos parte dela, está cada vez mais numa órbita que tem pouco a ver com senhas partidárias para assalto ao poder público. É a órbita da ação direta, da gestão criativa, da solução. O município de Chico Mendes acaba de ser incluído numa lista das Nações Unidas de práticas-modelo. O projeto de Exploração Sustentável da Floresta, através do Pólo Moveleiro da cidade, recebeu o Prêmio Internacional Dubai de Melhores Práticas, do Programa de Assentamentos Humanos da ONU. O uso racional de madeiras nativas na confecção de móveis envolve 150 famílias, que melhoraram significativamente sua renda.
O lugar de onde vem esta notícia está cheio de outras igualmente frescas, interessantes e reais – distantes do show fantasioso das campanhas eleitorais. É o projeto Cidade Sustentável, uma pista de que a política ainda possa ter alguma coisa a ver com a busca por uma vida melhor para todos. O responsável pela iniciativa é o deputado federal Fernando Gabeira, que não por acaso está sem partido.
Gabeira conquistou seu atual mandato pelo PT, e acreditava representar um certo conjunto de princípios avalizados pelo partido. No entanto, da noite para o dia, assim como se decide punir os velhos da nação pelo desequilíbrio do caixa, viu o governo do PT legalizar safras de transgênicos contrabandeados, investir em energia geradora de lixo radioativo e encampar o discurso de que os cuidados ambientais estavam travando o crescimento econômico. Todos são livres para mudar de idéia a cada manhã, mas se a idéia faz parte de um compromisso político-partidário, alguém pode querer pular fora da brincadeira. Gabeira pulou.
O projeto Cidade Sustentável (www.cidadesustentavel.com.br) é uma idéia tonificante para uma democracia impregnada de mofo partidário. Fernando Gabeira criou-o como uma espécie de rede de soluções, prospectando e estabelecendo links entre as mais diversas práticas criadas por universidades, associações e entidades variadas, inclusive governos. Desse entroncamento de iniciativas emerge um vasto painel – sempre em expansão – de possibilidades de gestão saudável da vida urbana. É um choque de esperança para quem se acostumou a viver a política como um Fla-Flu partidário, eterno tiroteio entre promessas que não se realizaram e as que não vão se realizar.
Do Pólo Moveleiro de Xapuri, pela rede da Cidade Sustentável, pode-se saltar para a Incubadora de Cooperativas do Rio de Janeiro. Ela organiza e acompanha grupos de trabalhadores até sua inserção no mercado. Uma equipe multidisciplinar, com professores, pesquisadores, técnicos e estudantes, dá apoio técnico e educacional de forma a permitir que, no máximo em três anos, os grupos tenham condições de sobreviver economicamente num espaço competitivo.
Já os Conselhos Comunitários de Segurança, projeto desenvolvido no Ceará, espalham núcleos de articulação entre a polícia e a população. Até o ano passado, já haviam sido criados cerca de 850 Conselhos, envolvendo diretamente 15 “voluntários da paz”. Eles estão espalhados pelos 184 municípios cearenses, com ramificações em bairros, distritos, vilas, povoados, litoral, serra e sertão.
Uma boa navegada pela Cidade Sustentável é suficiente para lembrar quanta vida inteligente pode existir fora do rame-rame partidário. Se o PMDB de Ulysses, que combateu as baionetas, tem boa vizinhança com o AR-15, e se o PFL, que amava tanto o Banco Central, agora quer que o câmbio se exploda, melhor revogar logo as letrinhas todas, que só servem para confundir. Se criaria então o partido dos que querem ficar um tempão no poder com Dirceu, o partido dos que querem voltar para sempre ao poder com Bornhausen, o partido dos que não se conformam em ter perdido o poder com Serra e o partido dos que querem dar só mais uma passadinha no poder com Maluf.
Esclarecido isto, o país poderia voltar a discutir seus problemas reais, já sem precisar pagar pedágio a miragens alfabéticas."
No comments:
Post a Comment