Artigo fantástico esse do Le Monde.
Como bom cidadão solidário, aqui vai o texto para vocês pobres irmãos injusticados que não podem ler o conteúdo pago:
"Vitória do neoliberalismo torna virtude o que era visto como um defeito: o individualismo
Análise: França solidária x França liberal - o país está dividido entre os defensores de um projeto coletivo e do interesse geral, e os expoentes do individualismo neoliberal e do "cada um por si"
Jean-Louis Andreani
Em Paris
Esperança coletiva, solidariedade social e política...
Essas palavras eram as mais utilizadas em maio e junho de 1936 (quando a Frente Popular, uma coalizão dos partidos de esquerda então no poder, instituiu muitas leis trabalhistas, tais como a das férias remuneradas). Setenta anos depois deste "belo verão", o contraste é espantoso entre a França da Frente Popular, por vezes ingênua com o seu entusiasmo excessivo, em particular no plano internacional, e aquela do verão que está começando: não há mais nenhum projeto coletivo, instaurou-se uma angústia social multiforme, enquanto a solidariedade está em frangalhos diante dos avanços de uma verdadeira ideologia do individualismo.
De fato, uma nova linha divisória veio se sobrepor às diversas fraturas que já tomaram conta do país, para desenhar duas Franças: a da solidariedade, e aquela do "indivíduo-rei", que por vezes vem a ser a do cada um por si.
Vale reconhecer que, no âmbito da população, a generosidade e o cuidado com os outros sempre se opuseram ao egoísmo e à indiferença. Mas a vitória das idéias neoliberais, a partir dos anos 80, proporcionou ao individualismo uma justificativa política e econômica.
Combinada com o fim das grandes esperanças coletivas das quais se alimentava a esquerda, a consagração do neoliberalismo transformou numa virtude aquilo que era anteriormente considerado como um defeito francês. Simultaneamente, o advento de uma sociedade cujos valores essenciais são o indivíduo e o dinheiro fortaleceu ou recriou a necessidade de solidariedade entre aqueles que ficam entristecidos com esta evolução num plano humano ou que a recusam de um ponto de vista político.
De um lado, portanto, temos uma França seduzida pelas idéias liberais. Para ela, o indivíduo é o conceito essencial, a concorrência o melhor regulador da sociedade, a lei do mercado uma regra intangível e salutar. A defesa das conquistas sociais, a recusa do crescimento das desigualdades, ou ainda a intervenção da potência pública na economia, acabaram sendo marcadas pelo selo do "arcaísmo", ou, até mesmo, do "partidarismo oculto do comunismo".
O princípio de precaução (segundo o qual medidas precisam ser tomadas quando existem razões suficientes para acreditar que uma atividade ou um produto pode causar danos à saúde ou ao meio-ambiente), que está inscrito na Constituição, não passa de um sinal de cautela excessiva e de recusa do progresso. Com isso, uma certa indiferença para com os outros, fora do circulo familiar e das relações privadas, é com freqüência o corolário dessas idéias, mesmo se ela não é confessa ou assumida.
Do outro lado, a França solidária revolta-se contra a exclusão; fica indignada com as desigualdades que existem tanto na França como no resto do mundo; defende os serviços públicos "à francesa"; recusa a preeminência econômica das idéias liberais, agita-se no âmbito daquilo que de vez em quando vem tomando as aparências de uma "contra-sociedade" nostálgica dos grandes movimentos do passado. Não raro esses militantes da solidariedade se sentem decepcionados com a política, na qual eles não mais encontram o que procuram para satisfazer sua vontade de engajamento coletivo.
O crescimento avassalador desta necessidade de solidariedade é perceptível de diversas maneiras. Assim, em 21 de maio, dezenas de milhares de pessoas manifestaram em Paris com música e debaixo da chuva, tendo como única palavra de ordem a solidariedade internacional para com os países do Sul duramente atingidos pela pandemia de Aids. Da mesma forma, pela primeira vez, a editora Autrement publica um "guia da solidariedade" chamado a se tornar anual --"Ensemble, Initiatives solidaires en France, Guide 2006" ("Juntos, iniciativas solidárias na França, Guia 2006", editora Autrement, 320 pág., 18 euros).
A discrepância volta a ser encontrada em relação à concepção da Europa, das relações internacionais, etc. Ela se reproduz nas forças políticas, sociais, na Igreja. Sem estarem engajados à esquerda, alguns cristãos recusam uma doutrina que deixa os mais fracos "à beira do caminho". Nas periferias, eleitos de direita sabem que apenas uma forte solidariedade dos habitantes entre eles e do país com elas poderia permitir às suas comunas saírem da situação de crise e do marasmo.
Ainda no campo da direita, alguns eleitos locais constatam os danos sociais provocados pelo aumento dos preços no setor imobiliário e lamentam que apenas o mercado governe o acesso à moradia. Inversamente, uma parte da esquerda moderada mostra-se sensível ao canto das sereias liberais. En particular, este é o caso da "esquerda caviar", conforme sublinha Laurent Joffrin no seu livro, "História da Esquerda Caviar" (editora Robert Laffont).
A fratura
A fratura/ruptura entre essas duas Franças talvez seja mais profunda do que aquela que opunha a direita e a esquerda durante os anos 60 e 70. Na época, ambas agiam em nome do interesse geral, mesmo se os dois campos tinham uma idéia diferente do que esse interesse vinha a ser.
Hoje, os liberais os mais radicais, ou os mais sinceros, contestam a própria existência deste interesse geral. Eles escoram sua concepção nos princípios de Adam Smith, um economista escocês do século 18, segundo o qual a situação mais adequada para todos resulta do livre jogo da busca, por parte de cada um, do seu interesse pessoal.
O pai do liberalismo econômico morreu em 1790, um ano depois do início da Revolução francesa, que fundamentou justamente uma filosofia política inversa: desde 1789, toda a história política da França foi construída em função da idéia de que o Estado republicano representa e defende um interesse geral que não resulta da soma dos interesses particulares.
Ora, os neoliberais os mais radicais, dentro da linhagem dos postulados fundamentais do thatcherismo (definidos por Margaret Thatcher, que foi primeira-ministra do Reino-Unido de 1979 a 1990), preferem ficar excluídos deste consenso.
Assim, um site na Internet intitulado "A página liberal, a atualidade dentro de uma visão liberal", publica um texto cujo autor, Georges Lane, sublinha: "Aos olhos da classe política e dos meios de comunicação, é considerada ultra-liberal toda pessoa que raciocina a partir do ser humano (...) e não a partir do conceito vago de "sociedade", toda pessoa que sustenta que o ser humano (...) age em função do seu interesse pessoal e não levando em conta um suposto interesse geral".
Este texto remete ao de um outro autor, que expõe suas idéias, entre outros, no site do Instituto Hayek, o qual goza de uma audiência importante. Sob o título "A Raposa no Galinheiro", François Guillaumat sustenta que "a opção de não interferir na vida política, econômica e social" não sacrifica (...) o interesse "da sociedade aos interesses particulares", uma vez que "só existe um interesse (...) para seres vivos individuais". Este texto afirma também que todo "poder político se baseia em última instância no poder de prejudicar, na capacidade de destruição".
Vale reconhecer que o extremismo que esses textos expressam não é compartilhado pelo conjunto dos liberais franceses. Mas o questionamento do papel do Estado, e até mesmo da ação política em si, a visão muito individualista da sociedade, são efetivamente a fonte da sua abordagem.
É difícil dimensionar ao certo a importância relativa das duas Franças, a solidária e a liberal. Em todo caso, é certo que elas não mais se entendem e que elas conversam cada vez menos entre elas. O seu principal ponto de encontro talvez seja a apropriação das novas tecnologias no manuseio das quais, por meio de utilizações diferentes, as duas são exímias. É muito pouco para alimentar a coesão de um corpo social."
Enquanto isso, na terra dos montros desiguais e gananciosos, o homem mais rico do mundo vai se aposentar para poder dedicar mais tempo a sua fundação. Ele já disse que o plano é doar 95% da sua fortuna.
Ah, a realidade, essa destruidora de sonhos.