Quarta, 11 de agosto, 2004
Governo mostra a sua face autoritária
Esse editorial do Estadão está muito bom, vale a pena conferir:
"Governo mostra a sua face autoritária
Esperava-se que a rejeição manifestada por amplos setores da sociedade ao ominoso projeto do governo que propõe a criação de um Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) suscitasse algum tipo de reflexão e autocrítica dentro do governo. Não foi o que aconteceu. Os jornais de ontem registraram um forte recrudescimento da ofensiva autoritária das autoridades. O governo, aberto e sensato na condução da política econômica, está mostrando a face ditatorial do seu projeto de poder.
O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse ontem que o País vive uma onda de denuncismo, ao justificar a idéia da criação do CFJ para disciplinar a atuação dos jornalistas. "Acredito que o conselho não será instrumento de censura ou de sujeição da imprensa, mas de disciplinamento da profissão, como ocorre com os advogados e outras categorias." Em primeiro lugar, o ministro "acreditar" é prova de que não pode garantir que não haverá censura. Quanto ao disciplinamento da profissão, o conceito, sem dúvida esdrúxulo, procura equiparar o trabalho dos jornalistas ao ofício de profissionais liberais, o que os jornalistas não são. Além disso, o jornalismo, como deveria saber o ministro, é serviço público e pré-requisito de uma sociedade democrática. Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades, é um direito inalienável da sociedade. Reclama, por isso, a ausência de amarras e regulamentações estabelecidas por aqueles que, freqüentemente, estão no foco de investigações legítimas e necessárias. São, portanto, parte interessada no amordaçamento da mídia. Talvez seja esse interesse dos governantes que tenha inspirado ao ministro o outro argumento que usou para justificar o injustificável. Propondo que se "discuta com seriedade a tarefa de disciplinar as responsabilidades inerentes à comunicação", Thomaz Bastos disse que "é preciso pensar o papel do Ministério Público, da polícia e da imprensa". O ministro, mais uma vez, confunde atribuições e mistura papéis. São bem distintas e conhecidas as missões das três instituições. O papel social da imprensa é claro: informar e formar opinião através da livre discussão de todas as opiniões. A polícia colhe provas. O Ministério Público - cujo poder de investigação o governo está contestando - investiga e apresenta a denúncia e, finalmente, o Judiciário sentencia. Não se exija da imprensa o absurdo de só informar a respeito de assuntos já decididos e transitados em julgado. Os meios de comunicação, com responsabilidade e ética, têm o dever de levantar questões relevantes para o interesse público e apontar indícios consistentes de irregularidades que lesem o interesse público. Eventuais excessos podem ser corrigidos pela legislação vigente. Como bem lembrou nota da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), divulgada nos jornais de ontem, "os abusos do mau jornalismo devem ser corrigidos através da Justiça, como prevê a Constituição, sem necessidade de qualquer órgão com poderes para cercear a liberdade de expressão e acarretar até perda de registro profissional".
A AMB considera que a criação do CFJ, a possível votação da Lei da Mordaça e o questionamento do poder de investigação dos procuradores fazem parte da "mesma lógica autoritária".
O jornalista Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo de ontem, faz coro com o ministro da Justiça. Segundo Kotscho, "o objetivo central da criação do CFJ - a exemplo do que há muito ocorre com advogados, médicos, economistas e outras categorias - é exatamente defender a dignidade e a ética exigidas no exercício da profissão, para garantir à sociedade a plenitude da liberdade de imprensa, e não a liberdade para alguns profissionais e algumas empresas divulgarem o que bem entendem a serviço dos seus interesses." (sic!) (grifo nosso). Num emblemático exercício de prejulgamento, Ricardo Kotscho desenvolve um raciocínio que leva à conclusão de que a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), "inspiradora" do projeto de amordaçamento da imprensa e formada por um monolítico bloco ideológico de colorido petista, está do lado do bem. Já as empresas de comunicação e os jornalistas que, honradamente, ganham a vida no exaustivo trabalho de produzir um jornal todos os dias do ano estão, a priori, do lado do mal.
O Brasil está revivendo o espetáculo de mentiras e sofismas que prenunciaram, décadas atrás, o advento de ditaduras de direita e esquerda."
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