Domingo, 22 de maio, 2005
Sobre o artigo "Adeus às armas", de Hélio Schwartsman
Aqui vai uma cópia do email que mandei para o Hélio Schwartsman, em referência ao editorial "Adeus às armas".
Caro Hélio Schwartsman,
Gostaria de comentar alguns pontos do seu editorial "Adeus às armas", publicado na Folha Online do dia 19/05/2005.
Primeiramente, fico contente que o seu argumento à favor da proibição não caiu na falácia tradicional de que "a criminalidade irá diminuir". Um dos maiores problemas sobre esse assunto é justamente essa falsa expectativa que o governo passa à população. Isso não somente torna a discussão um tanto maniqueísta (o que pode viabilizar exageros, como a recente proibição de porte de armas para guardas metropolitanas) como também esconde certas consequências não-intencionais de tal medida. A pergunta do referendo pode parecer capciosa, mas não podemos deixar de lado a possibilidade que é somente um aviso do que estaria por vir.
Voltando então ao seu texto, o primeiro problema que achei foi quanto aos possíveis benefícios do controle de armas. Você mesmo diz que "(o controle de armas) tende a afetar apenas três estatísticas: homicídios por causas fúteis e acidentes e suicídios com armas de fogo. No caso dos suicídios, o "ganho" deve ser muito pequeno. Presume-se que a pessoa de fato disposta a dar cabo da própria vida encontrará os meios de fazê-lo quer tenha ou não acesso a revólveres. Já em relação às outras duas categorias, os resultados podem ser bastante bons."
O detalhe que faltou aqui é que o suicídio é o uso mais comum das armas de fogo. Nos EUA, por exemplo, a porcentagem chega a 57% de todas mortes involvendo armas de fogo (fonte: CDC National Center for Health Statistics mortality report online, 2005). No Canadá, aonde o controle de armas é forte, a mesma porcentagem chega a 80% (fonte: Canada Safety Council).
Quer dizer, a maior parte das mortes do grupo que você citou em teoria não seria afetada, já que fica difícil imaginar que no Brasil essa proporção seja muito diferente. Consequentemente, fica difícil acreditar nessa estatística de que "60% das mortes por armas de fogo na grande São Paulo sejam causadas por conflitos intersubjetivos". Para que isso fosse verdade, a porcentagem de suicídios teria que ser muito baixa, e a taxa de assassinatos criminosos e acidentes mais baixa ainda.
Ainda sobre os benefícios do controle de armas, alguns dados não foram analisados. Você cita a Austrália e Canadá, mas se esquece do Reino Unido. Por lá, de acordo com o Centre for Defence Studies no Kings College de Londres, o número de crimes com armas aumentou 40%, de 2.648 em 1997/98 (ano em que a proibição foi introduzida) para 3.685 em 1999/2000.
(fontes: Telegraph e BBC)
Mesmo na Austrália, aonde a restrição de 1996 foi bem menos severa (não incluiu pistolas e semi-automáticas) os resultados são melhores, mas não muito conclusivos. Os crimes cairam acentuadamente em 1998 mas depois voltaram a subir. Os números atuais são próximos aos de 1994. (fonte Australian Bureau of Statistics)
Já nos EUA, de acordo com o Departamento de Justiça, os crimes violentos e com armas de fogo vem caindo consideravelmente nos últimos 10 anos (50% no caso de crimes violentos). E o número de armas de fogo continua crescendo, com algumas pesquisas indicando que quase metade da população civil possui pelo menos uma arma em casa. Atualmente, os EUA tem proporcionalmente menos crimes violentos que o Reino Unido e Austrália, e menos suicídios que o Japão.
Por último, no quesito de uso defensivo de armas, apesar de realmente existirem poucos estudos, nem tudo se resume ao John R. Lott. Gary Kleck e Marc Gertz, do Instituto de Criminologia da Universidade da Flórida, fizeram um estudo que estimou que 2.5 milhões de americanos usam armas defensivamente por ano. Outro estudo, bem mais pessimista (ou menos otimista), do David Hemenway de Harvard, estimou o número entre 55.000-80.000 casos por ano. Considerando que em 2003 16.503 pessoas foram assasinadas nos EUA, mesmo o número de 55.000 por ano é considerável.
Concordo que esses estudos à favor da posse e porte de armas de fogo são realmente poucos, e com certos problemas (uma boa análise de alguns desses foi feita por Daniel Webster, da Johns Hopkins University). Entretanto, os estudos sobre os perigos das armas de fogo também são problemáticos (um bom exemplo é o famoso argumento sobre o número de crianças mortas por armas de fogo). As manipulações são constantes em ambos lados, e a diferenciação entre correlação e causa é muitas vezes difícil. Os meus argumentos (assim como os seus) não são exceções, e por isso mesmo, acredito que devemos analisar o máximo de informações possíveis antes que uma decisão seja tomada.
Enfim, não concordo que "as forças da civilização" deveriam apoiar tão rapidamente a total proibição de posse de armas por civis, especialmente no caso domiciliar. Quem sabe em uma sociedade mais estável, o controle de armas seja um 'trade-off' aceitável de segurança por um menor risco de acidentes. Mas considerando a situação atual do Brasil, que tem uma taxa de crimes altíssima e uma polícia com graves problemas de corrupção e ineficiência, o resultado pode ser um caos ainda maior do que o atual.